quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Vermeer



Em 1995 (a.I. ou seja, antes das facilidades da internet) tinha umas férias para tirar e fui para a Europa (primeira viagem com a futura patroa, precisava impressioná-la), começando mais precisamente em Amsterdam, onde eu tinha o firme propósito de ver o grande acontecimento artístico da estação: a esperada mostra do grande pintor holandês Johannes Vermeer (nascido em cerca de 1632, morto em 1675, em Delft) no Museu Muritshuis em Haia. Pela primeira vez 21 pinturas (das 30 atribuídas ao grande mestre) estariam reunidas num esforço conjunto de museus e colecionadores do mundo todo, entre os quais se inclui a rainha da Inglaterra.
Ledo engano o meu. Quando cheguei ao aeroporto, todas os escritórios de informação turística tinham o seguinte cartaz em seus guichês: “Vermeer is sold out”, como se o pintor que morreu na miséria aos 43 anos, deixando viúva e 11 filhos vivos, fosse um grande astro do rock, com concerto esgotado. Da pretensão original da viagem a única coisa que trouxe, além da paixão por Amsterdam como cidade incrível para se passar alguns dias, foi um estupendo livro comemorativo, meio que catálogo da mostra, que comprei numa livraria e que guardo feito relíquia, em minha estante.
Desde então tenho procurado o Vermeer nas escassas viagens que faço ao exterior, em museus em Nova York (tem quadros no Metropolitan e na Frick Collection), no Louvre (The Astronomer e The Lacemaker), além de revê-lo sempre que tenho vontade nos pixels da internet. Vermeer inclusive ganhou um filme específico (A Garota com Brinco de Pérola) e o grande e enigmático Peter Greenaway fez um filme todo baseado na estrutura de iluminação de Vermeer (em português o filme se chama “Um Z e dois Zeros” e é de 1985).
Por que escrevo isso? Ontem à noite a TV Cultura me chamou enquanto zapeava entre dois joguinhos muito ruins de futebol para ver a explicação do quadro “The Art of Painting”, um daqueles documentários valorosos e bem cuidados da BBC, que às vezes concorrem infrutiferamente com o Big Brother na atenção das pessoas. E o documentário me contou várias coisas que eu não sabia: que esse foi o único quadro dele que a esposa tentou salvar após sua morte, falsificando um documento em que ele o transferia para a sogra. Que o zeloso executante de seu inventário não perdoou , recuperou a tela e a leiloou para pagar dívidas. Que o quadro sumiu durante dois séculos para ressurgir na Áustria comprado por um nobre, por uma ninharia. Que ganhou grande fama e reconhecimento depois da invenção da fotografia, a partir de quando passou a ser possível julgar a qualidade pictórica e realista da inigualável arte de Vermeer. Que depois da invasão alemã de Viena o quadro foi disputado por Goering e foi finalmente subtraído por Hitler e utilizado como exemplo do modelo de arte superior ariana. Que foi preservado subterraneamente numa mina de sal, junto com mais 8.000 obras, para defendê-lo dos bombardeios aliados em Munique, que foi encontrado, nesta mina, num cofre pelos americanos e que hoje está de volta a Viena, como exemplo de como a arte supera a vida dos homens, suas ambições e suas misérias.
Em termos estéticos, a peça é uma obra prima de detalhes, com o uso da luz claro-escuro e de pontos de fuga para criar sensação de perspectiva (há inclusive um furo feito com alfinete logo abaixo da mão da figura feminina, utilizado para esticar barbantes que ajudavam o pintor a construir as linhas ortogonais da perspectivas). Mas a qualidade do quadro vai além de sua técnica. O sublime está na mensagem: o quadro mostra uma modelo posando para um pintor, com uma série de simbologias que retratam a oposição do catolicismo (Vermeer era católico praticante, papista) com o nascente protestantismo. Descobriu-se depois a simbologia relativa aos objetos e vestes da moça retratada: ela posa de Clio, a musa da História, segurando uma trompa (a fama) e um livro (o registro das coisas feitas na vida) e tem coroas de louros (a glória). O pintor só esboçou a coroa de louros em seu quadro que inicia dentro do próprio quadro (uma metalinguagem muito interessante). A glória do pintor (Vermeer) só será alcançada através da história. Assim foi. Assim é. Assim será. Como num frame de um filme do qual o quadro é apenas um instantâneo (comentário maravilhoso apontado por um dos especialistas no documentário).
Quer saber mais? Acesse este site aqui: http://www.essentialvermeer.com
Meu quadro predileto? A Vista de Delft (circa 1660-1661).

3 comentários:

Mara disse...

Ah! Dá licença! Puta merda! Que saudade.....saudade de conviver com gente que fala e escreve bem...com sentimento...com ironia...com alegria...acido....mas também suave.
Saudade do privilégio e alegria de reler (melhor seria rever) quem tanto me ensinou.
Filhos na adolescência...voc^nem imagina quantas vezes citei teu exemplo.
Depois do prazer do blog (que deverá virar um livro) agora alem das contas...et...filhos...etc...trabalho...etc....vou ter que arrumar por prazer....por obrigaçao e por muito carinho um tempo para visitas....vai postando...adoreeeeeeeeeeeeeeeeeeeeei...beijos

Olhar... disse...

É... tá complicado comentar este post.
Toda essa parte de achados e perdidos relativos ao Vermeer eu já sabia.
Mas o que comove aqui é a formna como vc se debruça sobre o assunto.
Dá gosto perceber como algumas pessoas ainda se deliciam com a arte.
E assim vamos...
Abraços.

Unknown disse...

Acho interessante que o sujeito vivia como negociante de obras de arte. Ou seja, em ver de produzir, ele mercadejava quadros dos outros.

Se não me engano, o Vista de Delft também era o preferido do Oscar Wilde. Gosto de profundis...