quinta-feira, 25 de março de 2010

O que há de errado com esta lata?

Entre tantas discussões sobre aspectos éticos da comunicação de marketing, muito foco tem sido dado às ações de propaganda. Isso é justificável: a propaganda tem maior visibilidade, demanda maiores verbas, faz parte do cotidiano da cultura e também já estabeleceu no seu processo de decodificação por parte do público uma série de mecanismos de defesa que aumenta a posição de resistência da sociedade à sua mensagem e, neste processo, provoca mais discussões. Quero dizer com isso que a maioria das pessoas não está na posição amorfa e crédula, vendo anúncios no meio de novelas e jogos de futebol, babando e com um telefone à mão, prontas para consumir o primeiro abshape que assistirem no intervalo da Gazeta. Tá bom, você pode contra-argumentar me falando de uma certa tia Ederwiges que comprou abshape no último mês apesar dos seus 84 anos e seus 145 quilos, com o propósito de adquirir uma barriga tanquinho, que nem a do Giovanni do vôlei. Reconheço que essa é uma longa discussão e muito trabalho acadêmico tem que ser feito sobre o assunto. Porém também acho há uma crítica exagerada que tende a colocar o anúncio como bode expiatório dos pecados de nosso modo de vida, no primeiro plano do mundo darthvaderiano da sociedade de consumo. Pelo que leio de muitos coleguinhas e analistas, especialmente das Sociais, aquele personagem lá d’O Senhor dos Anéis, que encarnava o Mal absoluto, o Sauron, na verdade tem negócios no mundo da comunicação de marketing. Sauron & Vader, por sinal, seria ótimo nome para uma agência.
O que gostaria de evidenciar nesta discussão é que as pessoas prestam mais atenção aos pecados e bobagens que a propaganda faz inclusive porque possuem um senso crítico mais desenvolvido para estas bobagens e pecados. Como disse nuns posts aí abaixo, agências e anunciantes até mesmo exploram essa situação, aoveicularem campanhas bem discutíveis, preparados para fazer do processo que vão tomar no Conar uma forma de repercussão estratégica para o “arrojo” de suas marcas.
Porém, quando dedicamos muito foco para a propaganda, podemos deixar de olhar para outras ações e esforços que talvez merecessem atenção mais detalhada e muito mais discussão. À medida que as demais disciplinas da comunicação de marketing (Relações Públicas, Eventos, Patrocínios, Design, Marketing Digital, Promoção de Vendas, Marketing Direto) ganham em relevância, profissionalismo e uso estratégico, mais pecados e bobagens são cometidos e maior atenção também deveria ser dedicada a estas ações.
Não sou a favor, como alguns legisladores especulam de forma insistente, do banimento total da propaganda de bebidas alcoólicas, já que a sociedade permite sua comercialização em ambiente legalizado. Dei, inclusive, uma declaração a respeito deste assunto no caderno Aliás d’O Estadão (veja o link aqui: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-que-pensam-os-especialistas,281961,0.htm). Defendo, entretanto, uma postura ética e uma vigilância crítica aos esforços destes praticantes de marketing EM TODO TIPO DE AÇÃO QUE DESENVOLVAM.
Pegue por exemplo a imagem da lata da Brahma que está à disposição em todas as melhores gôndolas do ramo. O que há de errado nela? Alguém prestou atenção à ligação descarada que se estabelece entre a bebida alcoólica e uma instituição esportiva nacional, a seleção brasileira de futebol, às vésperas de Copa do Mundo? Talvez não sejam muitos os que vejam pecado na união estabelecida entre esporte e a latinha com 4,8% do volume em álcool. Ora, que mal há, se a cerveja é patrocinadora das transmissões, mantém placas nos locais dos eventos, tenha entre os garotos de propaganda jogadores, técnicos e ex-jogadores? E pergunto em contrapartida: não é quase a mesma coisa que colocar a foto do Ronaldão ou do Robinho sorridente no rótulo da garrafa de pinga? Ah, a questão da graduação alcoólica é fator importante e a cerveja é bebida social, alguns pés-de-cana, de lata na mão e um bom pedaço de picanha assada entre os dentes, poderiam argumentar. Conto com sua reflexão e bom-senso, caro leitor e companheiro de churrasco, para estabelecer os limites e restrições para ações desse tipo.
No meu ponto de vista, há muito problema sim. Se o produto fosse tão inofensivo não haveria tanta campanha do tipo “se beber não dirija” e os botecos da periferia não teriam que fechar suas portas em certo horário como forma de desestimular a violência. Se não houvesse problemas em promover produtos que exigem reflexão para o consumo, o cigarro não seria tão condenado pelo esforço que fez em ligar sua imagem ao esporte. Se a discussão sobre o estímulo ao consumo do produto não fosse tão relevante, certamente não seria proibida a venda de cerveja no próprio estádio.
Posso desenvolver toda uma tese acadêmica, com pesquisa empírica etc. etc. sobre a admiração que crianças mantêm com o futebol e seus personagens, as relações intuitivas entre sua paixão e o produto que a sustenta, o qual, pelo seu lado, se vale do ambiente comunicativo para estabelecer posicionamento. E então poderia demonstrar a ponte que se estabelece entre a adolescência e a experimentação de um produto que, em última análise, deve ser consumido “com moderação”, sendo que os adolescentes são o epicentro de coisas como torcidas organizadas e violência.
Colocar a marca da seleção na embalagem desse produto é golpe baixo. Se a CBF, entidade de interesse público mas de direito privado, não vê problemas nisso, a sociedade deveria enxergar.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Felipe e a pipoqueira honesta

Eu e meu filho de 8 anos gostamos de ver jogos do Santos no estádio, desde faz tempo, desde quando o centroavante era o Kléber Perde-Gol Pereira, o que significa que não somos adeptos de qualquer oba-obismo. Gostamos do nosso time, na alegria e na tristeza. É claro que, como consumidores-clientes do entretenimento e da paixão, ficamos ainda mais satisfeitos quando vemos shows como o do domingo passado. Ele, por exemplo, perdeu o terceiro gol do massacre (Santos 9 X Ituano 1) porque estava fazendo xixi.  Mas teve pelo menos mais uns 6 pra ver e se divertir.

Um fato da jornada esportiva de domingo me chamou a atenção e me motivou a escrever no blog, para servir como exemplo das relações éticas, de memória e de formação de valores de um indivíduo desde a infância.

Há umas rodadas atrás (bem lá atrás, dia 17 de janeiro, Santos 4 x Rio Branco 0) fomos ao Pacaembu e compramos pipoca. Na hora de pagar eu tinha só uma nota de R$ 20 e a pipoqueira não tinha troco. Ela ficou meio atrapalhada e me disse: “olha, vou ali trocar e depois trago o dinheiro”. Levou minha nota. E eu fiquei ali esperando meus R$ 12 de troco (sim, uma pipoca em estádio custa R$ 4). Passaram-se 10 minutos. Nada. Passaram-se 20 minutos, comecei a pensar no troco como “perdas a contabilizar”. Pois mais uns 5 minutos se passaram e lá veio nossa pipoqueira, meio humilde, pedindo desculpas, com meus R$ 12 na mão. Falei assim para o meu filho: “Viu só? Ela é honesta. Demorou, mas trouxe nosso dinheiro”.

Corta a cena para o dia 21 de março. Felipe e papai no mesmo setor do estádio. Lá no meio daquele monte de gente meu filho me falou assim: “papai, olha lá a pipoqueira honesta”. Ele a reconheceu de longe, talvez de olho no pacote de pipocas depois de ter tomado seu sorvete regulamentar. Chamei a moça. Perguntei: “você se lembra da gente? Outro dia você ficou de trazer o troco, demorou,  mas trouxe”. Ela confessou, meio tímida: “não lembro, não senhor”. Disse eu:  “Pois meu filho se lembrou de você. Ele me disse: papai, olha lá a pipoqueira honesta. Por  isso vamos comprar de novo contigo”. Vi que ela ficou confusa e mais sem jeito ainda. Falou para o Felipe, meio emocionada: “Obrigado, garoto. Não é todo mundo que traz o troco de volta, verdade”.  Compramos pipoca a extorsivos R$ 4 o pacote. Mas acho que meu filho ganhou uma importante lição para a vida e desenvolveu, mesmo que inconscientemente, um valor que gostaria que ele passasse para os meus netos, se um dia eu tiver esse privilégio de ver minha descendência no Pacaembu ou na Vila gritando Santooooooooos! (e, se eu posso pedir mais coisas ainda, vendo esse nosso time do futuro marcando 9 gols).

sábado, 6 de março de 2010

Restaurant Week

Na porta do elevador mamãe terminando de arrumar os brincos, o menininho de 4 anos atrás:
- Onde vocês vão? Quero ir com vocês.
- Papai e mamãe vão sair. Criança pequena não pode ir.
- Vocês vão ver Avatar? Quero ir com vocês.
- Não, não vamos ver Avatar.
- Então onde vocês vão?
- Vamos num lugar.
- Qual lugar?
- Chama AK Delicatessen.
- Acá dequicatessen?
Papai e mamãe vão tentar jantar, na sexta feira à noite, estimulados por esse esforço de marketing de serviços, a Restaurant Week. O papinho é sempre o mesmo: menus com entrada, prato principal e sobremesa a preço fixo de R$ 39,90 em alguns restaurantes importantes e charmosos (entre muitos outros não tão convidativos, inclusive muitas pizzarias). Na verdade esse é sempre o chamariz, lá no restaurante o que acaba prevalecendo é o cardápio vistoso, carta de vinhos, e lá vai nosso equilíbrio econômico-financeiro para o buraco. O evento é meio cópia de coisas semelhantes que acontecem em Nova York, em Los Angeles e outras cidades européias.
Nossa dúvida era entre a Vinheria Percussi, La Vecchia Cuccina ou o restaurante judaico chic AK Dequicatessen, como diria o filho número 2. Escolhemos esse último porque fica perto de casa e porque sempre quisemos experimentar o cardápio, de tanto que passamos lá na frente. Ajudou muito na decisão as fotos do site. Dava vontade de mastigar o monitor. Tentamos ligar muitas vezes para reservar mas o telefone dava direto na caixa postal. “Iiiiih, será que eles não trabalham na sexta-feira... não é dia de descanso judaico?”. O Guia do jornal disse que não; o restaurante, já disse, é judeu contemporâneo.
Ficamos de encontrar um casal de amigos lá e rumamos pra Consoleta, a nova região charmosa de São Paulo ao lado do cemitério da Consolação, com muitos restaurantes, que fica cada vez mais parecida com a Recoleta de Buenos Aires, também com restaurantes e mesinhas emoldurando com vida o lugar onde mortos descansam. Aí começa a lição do marketing para refletirmos. Eventos desse tipo servem para estimular demanda, mas será que quem participa está preparado para o que vai acontecer com jornais, revistas e sites bombando e chamando consumidores? Parei o carro e perguntamos para o manobrista “tem muita espera?”. “Meia horinha, doutor, mas se quiserem perguntar deixa o pisca alerta ligado”. Sra. Esposa vai até lá e volta com a informação: meia hora que nada, a previsão era de uma hora e meia de espera. O manobrista solícito-até-demais começa a influenciar no funcionamento do mercado: “Doutor, se vocês preferirem tem um restaurante bem bacana vizinho, bem bom mesmo, eu levo o carro!”. Eu confesso que sou meio reticente com essas indicações, ando um pouquinho com o carro e mais à frente ligo para os amigos que estão vindo. Vindo? Não, eles já chegaram. Sim, o restaurante está lotado, eles já sabem. O manobrista indicou um restaurantezinho bacana aqui do lado pra eles também. Eles já foram. Bem, estamos indo pra lá.
Muitos praticantes de marketing enfrentam isso todo dia: estimulam a demanda mais do que deveriam, criam expectativas que não podem atender e esses consumidores que, então, passam para seus concorrentes. Podemos ver a coisa pelo lado positivo: que bom que pessoas estão consumindo, que bom que novos restaurantes tenham a chance de ser provados e que bom que o manobrista ganhe sua comissãozinha (mas eu queria mesmo era comer aqueles pratos maravilhosos que tinha visto na tela do computador).


Becco 388 (R. Mato Grosso, 388) é um novo restaurante bem bonito (40 lugares, mais ou menos), decoração descolada, cujos donos - depois procurei no gugou – são dois chefs jovens que trabalharam em noviorque.
Alguns comentários sobre o restaurante e sua comida: o serviço poderia ser um pouquinho mais discreto, menos “vendedor”. Detesto esses couverts que se resumem a um pedacinho de manteiga e dois pãezinhos minúsculos e que custam R$ 8. Tá bom, a comida é contemporânea, mas a fome é renascentista. Melhor pedir entradas, então. Nossos amigos elogiaram por demais as massas (papardelle) e a Sra. Esposa gostou do risotto de costela, tirando o excesso de cebolas empanadas por cima, que ela detesta (a cebola). Eu fiquei feliz com meu milanesa com purê de batata doce, se bem que o bife poderia ter ficado um pouco mais sequinho e mais macio. A conta foi honesta e a noite uma delícia, com um casal de amigos que gostamos de montão, falando de filhos, de restaurantes e de viagens, como todos paulistanos em noites de sexta-feira, evento que faz um pouco da magia da minha cidade. Destaque para a participação especial, argentina ,de um Masí Paso Doble e um Luigi Bosca Malbec Reserva, tintos. Mais Consoleta impossível.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Devassidão

Já que o tema pulula na mídia pós-carnaval e interessa para quem estuda comunicação de marketing, seguem reflexões desordenadas sobre Paris Hilton e a bebida alcoólica derivada da fermentação de cereais que deveriam ser maltados.

Devassa era uma marca maravilhosa, com o espírito do boteco carioca. Para quem não teve o privilégio de tomar umas olhando a praia no Rio de Janeiro, fica o saboroso slogan: “aqui se faz, aqui se bebe” (eu queria ter criado). Na verdade nunca soube direito se era um boteco espetacular no qual se servia boa cerveja ou se era uma excelente cerveja que se bebia num ambiente muito legal.


Aí a Schincariol comprou. Na sua política de incorporar cervejas Premium e diversificar o portfólio, cujo carro-chefe é uma marca que faz muita espuma mas nunca engrenou como sinônimo de qualidade, os empresários de Itu entraram firme e abarcaram a Baden Baden de Campos de Jordão e a Devassa carioca. Pensei comigo, na época... “iiihhhhhhh”.

Vamos então à campanha. Paris Hilton é sempre chamariz. Mas como disse um dos fundadores originais da marca sobre a campanha, o trade-off envolvido foi a perda da carioquice da marca. Devassa e Paris Hilton deveriam combinar bem. Ou, como eu pergunto em sala de aula, há ajuste de compartilhamento simbólico entre celebridade e marca? Loura, sem-vergonha, bonita. Pelo menos uma coisa é garantida: vai chamar atenção.

O programa de comunicação integrada foi muito bem realizado pela agência Mood. Embalagem especial, ponto de venda especial, relações públicas a serviço do marketing, com quilômetros de centimetragem em mídia, filme ousado na tevê e – como brinde – Paris Hilton de vestido transparente e calcinha fio dental de quatro no camarote do Carnaval carioca para os fotógrafos se esbaldarem. Pura devassidão.

Problemas surgem quando concorrentes, ongueiros e outros cidadãos entram no Conar reclamando do excesso de erotismo associado a campanha para vender bebida alcoólica. Públicos jovens adolescentes expostos a estas campanhas podem ser estimulados, por meio do apelo sexual, a consumir um produto do qual se espera consciência e reflexão no consumo e nas campanhas que promovem o consumo. Belo discurso na teoria, é claro. Mas na prática é só a Devassa que faz isto? E os milhares de anúncios com gente meio pelada na praia e cantoras de axé convidando pra farra regada a cerveja? Isso pode?

(Parênteses: quer coisa mais condenável do que a lata da Brahma com o escudo da CBF? Pense na relação esporte, em época de copa do mundo,, e álcool que existe nisso).

O Conar é um mal necessário. E é sempre reativo. Ele age depois que a campanha foi ao ar. Se não fosse assim, seria censura (proibida em nossa Constituição). Se não fosse assim, facilitaria em muito a vida da concorrência. O Conar é um belíssimo discurso da autorregulamentação e da maturidade do setor, ao qual o publicitário sempre recorre quando acuado. Mas se a questão fosse muito mais séria, a campanha já teria ido ao ar e causado o impacto irreversível, faz é tempo.

Bem, o que descrevi lá em cima como sendo problema, na verdade é tudo o que uma marca chamada Devassa poderia esperar. Mais quilômetros de centimetragem e debates sobre a campanha. Boca a boca. Repercussão. Se possível regados a cerveja. A grande malandragem é que a expectativa da proibição do Conar já implicava numa estratégia. Tinha até filme preparado para entrar no ar pós-suspensão.Ishperteza pura.

A questão central continua a mesma, com ou sem proibição do filme pelo Conar. A coisificação da mulher como pedaço de carne para vender cerveja. Há um tempo atrás houve outra pérola: a Kaiser distribuía tampinhas com fotos de mulheres, como promoção para compra do produto. Quer coisa mais discutível do que oferecer coleção de foto de mulher em tampinha pra marmanjo comprar cerveja? Mais açougue impossível. Fora o uso do apelo sexual pra qualquer coisa. Daqui a pouco teremos desfiles de lingerie para vender plano de saúde. Mulheres de baby doll para vender salgadinho.

Há por fim aquilo que ninguém fala, mas que todos sabemos: o comercial da Devassa não pode, certo? Mas se a gente fizer um comercial com monges e freiras rezando e colocar no Pânico, no Big Brother Brasil ou em outro programa com gente de bunda de fora, aí pode?

Para completar, fico com o que o genial Tutty Vasquez escreveu hoje no Estadão: quando a Devassa lançar a cerveja escura, a campanha terá Naomi Campbell? E não deveríamos abrir um Programa de inclusão universitário nos moldes dos Pro-Unis da vida para as louras burras? Cartas para a redação.

(P.S.: nada disso faz sentido se as vendas dessa cerveja não empinarem. Se no ponto de venda o consumidor continuar comprando outra marca, tudo isso foi só ressaca de carnaval).

quarta-feira, 3 de março de 2010

Meu amigo da escola é um macaco

As ficções e futurismos do séc. XIX – capitaneadas pelo meu querido amigo de adolescência, Julio Verne – são brilhantes em vários aspectos de previsões sobre tecnologias (viagens espaciais, controle genético, submarinos), porém estas obras nunca conseguiram ao menos passar perto do que seria a vida na sociedade de massa.
Parece-me que o que escapou à ficção e às análises filosóficas do passado aquilo que verdadeiramente caracteriza o espírito de nosso tempo: a intermediação da vida por meios de comunicação de escala massiva. Em “Admirável Mundo Novo”, um dos meus livros preferidos que especulam sobre o futuro (e escrito no séc. XX por Aldous Huxley) há até a previsão de uma droga - sim, um comprimidinho tranquilizador – administrada e distribuída pelo Estado chamada soma, mas não me lembro de referências a shows da Ivete Sangallo nem ao Xou da Xuxa. Este é um contexto esquisito, com o qual eu sempre me assombro quando paro para refletir sobre os motivos que levam pessoas com o cerebelo altamente desenvolvido e o polegar opositor a organizar seu dia-a-dia em torno de fenômenos como as votações do Big Brother Brasil. Ou então o que justifica milhares de pessoas em simultaneidade dedicando tempo e atenção a coisas como o Programa Raul Gil. Tempo livre, ociosidade, necessidade de entretenimento e diversão, é claro. Mas deve haver formas melhores, eu imagino, do que banheiras em que atores se estapeiam por sabonetes, enquanto câmeras se posicionam ginecologicamente para deleite das audiências (sim, eu sei que esse quadro já está fora do ar, mas ele serviu só como ilustração patética de nossa condição).
Desenvolvemos uma vida arranjada em torno de um centro no qual estão dispostos receptores de ondas eletromagnéticas (ou então transmitida via cabo de fibras ópticas), aparelhos que delimitam o espaço para convivência da família. Em salas e quartos de tevê neste momento estão instaladas telas das quais jorram uma vida-de-fora-da-vida que ao mesmo tempo é a própria vida. Instantânea, simultânea, porém plástica, distanciada, artificialmente emoldurada para nos dar a sensação de que construímos e participamos de tudo isso que está aí, mas que ao mesmo tempo não temos nada a ver com isso. Voltarei ao assunto dia destes, mas como exemplos prosaicos podemos pensar no William Bonner falando boa-noite ou então em um jogo de futebol presenciado em estádio e a diferença de de assisti-lo pela televisão. Quem costuma ir às pelejas e depois volta correndo pra casa, ansioso para ver o vídeo tape, com replays, zooms e câmeras lentas, nunca deixa de se assustar com a impressão de que se tratam de dois eventos diferentes entre si, apesar de serem a mesma coisa.

Os desenhos animados constituem-se em outro fenômeno exemplar da vida contemporânea. Quando passo ali pela sala de tevê e vejo meus moleques aboletados no sofá em dia de frio, e escuto o espaço de suas vidinhas preenchido por vozes caricatas e ao mesmo tempo familiares, sempre me interesso pelo efeito, pela vivência e pelo sentido dos filmes que passam pela infância deles e comparo com os efeitos, as vivências e os sentidos dos filmes que passaram pela minha infância. Reflito sobre como eles se constituem em sofisticadas peças destinadas ao adestramento infantil; à inserção no mundo deles de valores sobre o que é o Bem e o que é o Mal; à aceitação da violência como forma legítima de constituição da sociedade; das relações ideológicas de justificativa do Poder; da presença de seres míticos que assustam e personificam a alteração do status quo; da condição contrária, na qual a Força está polarizada em figuras que podem defender o estado das coisas quando um alienígena resolve pisotear nos arranha-céus das Metrópolis que construímos de verdade e em nossas imaginações. Também não posso deixar de reconhecer como estes pequenos dramas da cultura contemporânea são divertidos, engraçados e engenhosos. Hoje por exemplo vi um episódio da série do Cartoon Network que se chama “Meu Amigo da Escola é um Macaco” (My Gym Partner’s a Monkey, criação de Timothy Cahil e de Julie McNally Cahil, de 2008). Vejam só o enredo da série: um menino (branco, wasp) tem o sobrenome alterado (de Lyon para Lion) por alguém que digita no computador e, desta forma, é transferido para outra escola (parecem ser os últimos anos do ensino fundamental) na qual, tirando ele, todos os demais alunos são animais. Claramente uma metáfora da transferência da escola particular, bonitinha, do subúrbio americano, para a escola de pobres, latinos, negros e estudantes desviados do mundinho padronizado. Esta é a escola Charles Darwin (opa!), na qual o Adão (Adam Lyon, é o nome do personagem com referência bíblica) trava amizade com um macaco-aranha (Jake), malandro, cuja principal diversão é bater na própria bunda. Tem também a cobra com camiseta (genial), a girafa, o diretor Sapão, a enfermeira Gazela e os professores (no episódio de hoje um mandril meio hippie tentava explicar sobre espaço vital e a importância de manter contato olho a olho). Ah, o episódio também contava a dificuldade que um dos amigos (o Wilson Gorila) tinha em lidar com uma fêmea que queria um encontro com ele. Gorilas são fiéis em suas relações e o personagem tinha muito medo de iniciar um relacionamento para toda a vida, sendo ainda adolescente. Por isso se escondia todo o tempo, inclusive dentro da barriga da cobra. O desenho acaba com ele aceitando melhor a convivência com a namoradinha (que lê um livro chamado Gorilla’s Bride, ou A Noiva do Gorila). O desenho é esquisitão mas tem bom roteiro, é engraçado e, pelo que li, não teve muito sucesso e já foi até descontinuado. Porém ideologicamente carregado de sentidos e ajusta-se perfeitamente a uma visão de mundo no qual crianças brancas são o centro e as demais são engraçadas, divergentes e meio abobalhadas. Este é o mundo que jorra da televisão, à qual meus filhos assistem e riem, assim como eu assisti e ri com outras coisas parecidas e, apesar disso, ainda posso escrever o texto que termino de escrever.


P.S.: Se quiser pensar melhor a respeito das cargas ideológicas dos gibis e dos desenhos animados, recomendo “Para Ler Pato Donald”, livro escrito por Ariel Dorfman e Armand Mattelart ali em 1976 (a última edição que conheço é de 2002, da Paz e Terra), que procura demonstrar todas as ilações ideológicas possíveis de serem identificadas na leitura de uma mera revistinha da Disney. Como o fato dos patos assexuados só terem sobrinhos (nunca filhos), viverem eternamente noivos, do respeito que todos os personagens dedicam aos milionários avaros e mais velhos, os quais representam o ideal de riqueza e poder. No contexto dos estudos de comunicação latino-americanos, Dorfman e Mattelart mostram que as tensões entre Bem e Mal, Justiça e Injustiça, n’O Pato Donald assumem um ponto de vista capitalista, liberal e modelado pelo estilo de vida norte-americano. É meio datado o livro, mas muito legal. Teve inclusive sua circulação restrita nos Estados Unidos, por causa de processos legais da Disney.