quarta-feira, 27 de abril de 2011

La Sebastiana



Neruda queria uma casa em Valparaíso, de frente para o Pacífico. Uma sua amiga descobriu um projeto semi-acabado, começado por um construtor espanhol chamado Sebastián, em uma encosta alta, de onde se podia ver o porto e o mar. O construtor não tinha mais dinheiro e queria passar a obra para frente. Neruda e Matilde compartilharam seu sonho com outro casal, que ficou com a parte debaixo. Eles ficaram com a parte de cima, cinco andares todos voltados para o oceano. No dia da inauguração ele leu o poema que transcrevo a seguir. A folha em que ele o escreveu em tinta verde está no escritório, quinto andar, numa mesa que li com meus filhos e minha mulher. Com eles compartilho minhas casas e meus sonhos.

Para “A Sebastiana”
                                                                          
Eu construi a casa.

Primeiramente fi-la  de ar.
Depois hasteei a bandeira
e deixei-a pendurada
no firmamento, na estrela,
na claridade e na escuridão.
Cimento, ferro, vidro,
eram a fábula,
valiam mais que o trigo e como o ouro,
era preciso procurar e vender,
e assim um camião chegou:
desceram sacos  e mais sacos,
a torre fincou-se na terra dura - mas isto não basta, disse o construtor,
falta cimento, vidro, ferro, portas -
e nessa noite não dormi.

Mas crescia,
cresciam as janelas
e com pouca coisa,
projetando, trabalhando,   
arremetendo-lhe com o joelho e o ombro
cresceria até ficar completada,
até poder olhar pela janela,
e parecia que com tanto saco
poderia ter teto e subir
e agarrar-se, por fim, à bandeira
que suspensa do céu agitava ainda as suas cores.

Dediquei-me às portas mais baratas,
às que morreram                                                                   
e foram arrancadas das suas casas,
portas sem parede, rachadas,
amontoadas nas demolições,
portas já sem memória,
sem recordação de chave,  e disse: “Vinde
a mim, portas perdidas:
dar-vos-ei casa e parede
e mão que bate,
oscilareis de novo abrindo a alma,
velareis o sono de Matilde
com as vossas asas que voaram tanto.”

Então a pintura
chegou também lambendo as paredes,
vestiu-as de azul-celeste e cor-de-rosa
para que se pusessem a bailar.
Assim a torre baila,
cantam as escadas e as portas,
sobe a casa até tocar o mastro,
mas o dinheiro falta: faltam pregos,
faltam aldrabas, fechaduras, mármore.
Contudo, a casa
vai subindo
e algo acontece, um latejo
circula nas suas artérias:
é talvez um serrote que navega
como um peixe na água dos sonhos
ou um martelo que pica
como um pérfido pica-pau
as tábuas do pinhal que pisaremos.

Algo acontece e a vida continua.
A casa cresce e fala,
aguenta-se nos pés,
tem roupa pendurada num andaime,
e como pelo mar a primavera
nadando como uma ninfa marinha
beija a areia de Valparaíso,
não se pense mais: esta é a casa:
tudo o que lhe falta será azul,
agora só precisa de florir.
E isso é trabalho da Primavera.

NERUDA, Pablo, Plenos Poderes, Tradução de Luís Pignatelli, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1962, p.73.

domingo, 24 de abril de 2011

Comentários sobre o Chile




Fiquei impressionado com a limpeza, com os prédios sem muros ou grades, nem porteiros, nem sistemas de segurança. Calçadas largas, pessoas civilizadas. Meu filho contou o número de mendigos que viu: 5, ao longo de uma semana. Dá certa inveja e certa amargura com o Brasil.

O Ricardo Freire, do blog Viaje na Viagem, matou a charada: quem vai a Santiago procurando Buenos Aires, não vai encontrar o estilo romântico e interessante dos portenhos, sua arquitetura parisiense, sua altivez arrogante. Encontrará um país que se moderniza rapidamente, com um povo mais contido e mais focado, que mira no Oriente para exportar e enriquecer. O seu Gérson, meu companheiro de viagem, decretou: a Argentina é um país que já foi rico e que não aprende a ser pobre. O Chile é um país pobre, que está aprendendo a ser rico. De fato, o enriquecimento é visível, apesar de certa ostentação. Por exemplo... um empresário maluquete alemão constrói um prédio de 73 andares em plena Las Condes. Nada demais, se não se tratasse de um país no qual se experimentam cotidianamente terremotos. Eu, por exemplo, nos dias em que estive lá, vivenciei dois (de 5,7 e de 5,3 pontos, respectivamente). O que seria grande notícia no Brasil,no meio da tarde tornou-se nota de rodapé nos sites chilenos, tão banais são tais eventos no Chile.

Mas é bom não esquecer: estamos falando de um país de 17 milhões de habitantes, com um território sui generis em todo o mundo. Da beira do mar à divisa com a Argentina, na latitude de Santiago, deve ter no máximo 200 km. Ao norte estão sentados em cima de uma das maiores minas de cobre do mundo, minério que exportam sem dó, em forma de matéria prima bruta, sem qualquer processamento. Além disso se tornaram tigres exportadores em outros produtos naturais de valor agregado alto, como frutas, vinhos, salmões e peixes e celulose. É possível perceber que o turismo também entrou na pauta central da atividade econômica no país. Ou seja, muitas fontes de receita, poucos para alimentar.

Os chilenos sabem disso e se vangloriam. No congresso que fui vi algumas palestras de alguns consultores pop stars da administração chilena. Um deles, baixinho, de óculos vermelho, afirmou de maneira impositiva: hoje temos 15% de pobres. Em 5 anos não teremos nenhum pobre. É uma boa perspectiva. E bastante factível. Apesar desse otimismo, não vi em momento algum ambição industrial nas estratégias do país. Nem uma visão de melhoria em serviços (em padrão bem abaixo do que estamos acostumados no Brasil). Nem uma pretensão tecnológica mais avançada, com exceção à pauta de exportação atual (frutas e vinhos produzidos com alta tecnologia e muita pesquisa). Dentro das ambições de potência do Brasil, isso soa meio estranho. Mas também pode ser muito bom: o Chile pode se tornar um país ecologicamente mais viável, com crescimento sustentado, sem grandes neuras ou ambições, mas bem de vida, como um fazendeiro próspero que não tem inveja do primo que vive na grande cidade.

No fim de tudo, vale a pena falar sobre a imagem dos brasileiros no Chile. Duas histórias. A primeira delas contada pelo motorista que nos levou a Valparaíso e Viña del Mar. Don Davi já teve um Astra e um Corolla e agora tem uma van Hyundai. Ele tem a seguinte opinão sobre os carros brasileiros importados no Chile: "sem querer falar mal da sua indústria, mas acho que o governo brasileiro obriga as fábricas internacionais a usar componentes eletrônicos do seu país. Por isso os carros quebram, especialmente em comandos eletrônicos, que acho que não são adaptados ao clima chileno. Carros coreanos e japoneses não quebram. Por isso cada vez menos chilenos compram carros do Brasil". Outro caso engraçado contado pelo motorista de táxi que trouxe Seu Gérson do aeroporto ao hotel: um dia ele perguntou a um hóspede brasileiro sobre o que achava do hotel onde estava hospedado. A resposta de nosso patrício: "é muito bom, o problema é que tem muito brasileiro".  O motorista achou engraçado e depois repassou a história para outro passageiro, argentino, que assim retratou o que muito dos nossos amigos que falam castelhano acham dos que vivem aqui na terra na qual em se plantando tudo cresce e floresce: "é, nem eles se aguentam".