quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O LIVRO QUE DEMOREI 25 ANOS PARA LER





Em 1985 eu trabalhava na Folha de S. Paulo, no mitológico prédio empastilhado da Barão de Limeira. Como a gente esticava o expediente em geral até as dez da noite, também éramos proporcionalmente mais liberais com o tempo de nossa hora do almoço. Aproveitávamos para empreender andanças no centro da cidade, em busca de discos usados, pechinchas e pratos como os bifes a camões dos botecos ao lado dos cines Metro e Olido. Numa destas incursões estava com o Carlos d’Ávila, que era contato e depois se tornou grande executivo de agências de propaganda e discutíamos quais seriam as áreas interessantes para o futuro. Ambos éramos (e acho que ainda somos) apaixonados pelo cinema e víamos nesta indústria grandes oportunidades. E olha que na metade da década de 80 o cinema mundial estava começando a descobrir quais seriam os efeitos de uma maquininha recém posta em circulação: o videocassete. Pois embalados por este papo, entramos na Siciliano da Barão de Itapetininga onde comprei dois livros:  O Filme Publicitário, de Gage e Meier, que até hoje uso em cursos de produção publicitária e que é um verdadeiro manual, extremamente didático, de como fazer um comercial para televisão (apesar de estar muito datado – ainda é da época da captação exclusivamente em película e edição por moviola – mas é um clássico, infelizmente com edição esgotada) e também comprei um livro com capa do Elifas Andreato e título muito provocativo, do qual vou falar agora: Os Cinemas Nacionais contra Hollywood, de um tal de Guy Hennebelle.

Pois este livrinho ficou na minha estante, junto com os demais “a ler” por looongos 25 anos. Só em 2010, com a necessidade de definição de um projeto de pesquisa para os próximos dois anos no âmbito da Universidade (engraçado... em 1985 jamais imaginaria que um dia viraria professor doutor) é que fui resgatá-lo, na tentativa de aprofundar meu entendimento dos mecanismos do mercado de produção audiovisual. Ler este livro foi muito esquisito e representou quase uma viagem no tempo, para quem viveu as discussões políticas de 1985 (época das diretas já e da eleição do Tancredo). Nesta época Lula ainda era só um líder metalúrgico socialista, de barba e boné e livre trânsito nos corredores da PUC e da igreja.
A perspectiva histórica que o livro fornece tem duas dimensões interessantes: primeiramente a da rapidez da evolução do sistema produtivo do cinema. Em tempos de Tropa de Elite 2, batendo recordes de bilheteria e lucratividade, a discussão sobre o império hollywoodiano e os esforços dos cinemas marginais na conquista de corações, mentes e bolsos, soa meio que inacessível para um jovem freqüentador do youtube que atualmente se interessa pelo marketing de produtos culturais . Há um capítulo muito interessante, escrito por Gary Crowdus chamado Um New American Cinema?, que discute a capacidade da máquina comercial hollywoodiana, um dos mais paradigmáticos empreendimentos capitalistas da história, se apossar de novas idéias, estéticas e abordagens, fornecendo capitais e estímulo para algo que possa dar retorno, inclusive filmes “contra-culturais”, como Easy Rider. No restante o livro se ocupa de apresentar diversas escolas, iniciativas e lutas de cineastas, tanto em termos históricos quanto geográficos, de oferecer alternativas ao modelo e às narrativas hegemônicas, delineadas por essa grande máquina de produção centrada na Califórnia, mas alimentada por bancos de investimento nova-iorquinos.
A outra dimensão interessantíssima (se bem que um tanto quanto enfadonha para o mundo pós-queda do Muro de Berlim) refere-se à orientação política que o autor propõe como ideal para o esforço de intelectuais e políticas que estejam no comando da produção cinematográfica. Hennebelle é assumidamente um marxista-leninista de orientação brechtiniana, que advoga a idéia do cinema como espaço e mecanismo indispensável para o esforço da revolução socialista. Como todo autor da década de 1970 (o livro originalmente é de uma edição francesa 1975) há grandes dilemas com o fim da utopia socialista soviética, a discussão da alternativa chinesa e a dificuldade de entender a Revolução Cultural que tomava curso e – por incrível que pareça – a consideração de um modelo albanês (?!!!) como paradigma para a luta política da época. Seria engraçado se eu não tivesse, naquela época, participado de infinitas discussões sobre o sonho socialista que acabava de desembocar na fundação de um certo partido dos trabalhadores.  O livro dá grande destaque ao cinema novo brasileiro, em especial a Gláuber Rocha (a quem sempre achei que acertava na crítica e na formulação do modelo teórico, mas que, na minha opinião, fez um cinema dos mais chatos de todos os tempos). Também há muito espaço ao neo-realismo italiano e uma enorme discussão sobre o enigma Godard: mistificador ou questionamento necessário? Obviamente que um marxista leninista de orientação albanesa cai de pau no franco-suíço.
Outra coisa bem interessante é a vasta compilação de citações e autores que de outra forma seriam inacessíveis aos brasileiros. A leitura de Monsieur Hennebelle é vasta e alcança os grotões da produção intelectual da época. Entre os vários autores citados, eu separei o seguinte apud Hennebelle, que merece ser pendurado na sala de produção dos executivos e pensadores sobre o cinema nacional e que certamente vou utilizar quando discutir o fenômeno Tropa de Elite. Trata-se do excerto de um discurso do presidente Ho Chi Minh aos cineastas vietnamitas em 1972 (quando a guerra ainda não havia acabado).
“[...] Não é fácil fazer bons filmes. Vocês conhecem melhor que ninguém o trabalho e o esforço necessários. Alguns países dispõem de meios cem vezes superiores aos nossos. Mas nem por isso produzem necessariamente bons filmes. Vocês com um talento modesto e meios limitados, conseguem produzi-los. Por quê? Porque nosso país possui temas interessantes em abundância” (MIHN, apud HENNEBELLE, 1978, p. 207).

Feliz 2011. Prometendo agora ser mais dedicado ao meu blogdojosmar.