Antes de continuar a ler, você sabe onde estão sua máquina e seu celular, neste exato instante?
Bem, o assunto aqui é nossa fixação pelo registro de imagens. A máquina fotográfica particular, portátil e razoavelmente descomplicada, é uma invenção típica da modernidade e da sociedade de consumo. Quando em 1888 o norte-americano George Eastman lançou um dispositivo capaz de fazer com que leigos capturassem e fixassem imagens, na verdade criava uma nova indústria e mudava um pouco de nosso modo de entender e nos relacionarmos com o mundo. Em cinco anos, 90 mil Kodaks baratas foram vendidas , na mesma época em que surgiam o cinema, o rádio e o fonógrafo.
Meu doutorado é sobre a imagem, por isso pesquisei um bocado sobre como nossas formas de estar no mundo escoram-se na capacidade de produzir formas de representação visual, tanto da realidade factual quanto da imaginada. Tem uma citação do Ramesh Raskar, pesquisador e professor do Media Lab do MIT, que acho resumir bem o estado das coisas: "não se trata da mera expansão quantitativa das imagens. O fato novo é o relacionamento das pessoas baseado cotidianamente no registro e na ânsia de consumir imagens". Por isso cada vez mais ipads, celulares, facebooks e a internet facilitam esse trânsito de fotos capturadas de maneiras simples e descomplicadas, inacessíveis à imaginação de nossos antepassados.
Outro dia na festa de Bodas de Prata de amigos fiquei contemplando o paradoxo deste mundo do registro: enquanto o casal renovava seu compromisso de amor, em uma cerimônia religiosa tocante e sincera, fotógrafos e videografistas tomavam a frente, dando as costas para as pessoas que estavam ali para presenciar. Ou seja, no momento mais tocante da cerimônia, todos vimos apenas os ternos alugados dos profissionais empenhados na captura das preciosas imagem. E, se os que estavam ali eram os que respeitam e compartilham a felicidade dos esposos, para quem então eram produzidas estas fotos e vídeos? Para eles mesmos? Para os que não estavam ali? Para os que estavam ali reverem?
Escrevo sobre este tema depois de superar o luto pela perda (ou roubo, sei lá) da minha máquina fotográfica Nikon Coolpix no penúltimo dia de minhas férias na Bahia. Quando nossa família se deu conta da perda, mais à noite no quarto do hotel, grande comoção se abateu sobre todos nós. Na memória da máquina estavam fotos preciosas, momentos que escolhemos entre tantos para guardar e rever. Fotos de nosso trabalho (meu e dos meus filhos) pintando paredes. Das festas do final de ano. De minha viagem à Alemanha. Da própria viagem, como as fotos que tirei da moqueca na Barraca da Maria Nilza na praia de Guaiú . Dos meninos na piscina, dos meus barquinhos revistos no rio João de Tiba. Que tristeza! Reviramos todos os lugares do quarto, conversamos com gerentes, funcionários, hóspedes, ofereci recompensas, voltei à vila onde estivera na parte da manhã. Nada. Nem traço. A sensação foi horrível, além da perda material e afetiva, também da violação de nossa vida nas mãos alheias.
No filme Blade Runner (e também no livro do Philip K. Dick que baseou o filme do Ridley Scott, "Do androids dream of electric sheep?") há esta discussão sobre implantes de afeto nas mentes, baseados em associações a imagens. Os replicantes andróides do filme de ficção científica, criados por uma corporação, não sabem direito se são humanos ou máquinas da biotecnologia e têm especial afeto por fotos que demonstrar suas existências como seres. Com as fotos eles têm história, têm memória, têm referências. As imagens estão ali para comprovar. As minhas estão em algum lugar da Bahia. Cuidem bem das suas.
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