quarta-feira, 3 de março de 2010

Meu amigo da escola é um macaco

As ficções e futurismos do séc. XIX – capitaneadas pelo meu querido amigo de adolescência, Julio Verne – são brilhantes em vários aspectos de previsões sobre tecnologias (viagens espaciais, controle genético, submarinos), porém estas obras nunca conseguiram ao menos passar perto do que seria a vida na sociedade de massa.
Parece-me que o que escapou à ficção e às análises filosóficas do passado aquilo que verdadeiramente caracteriza o espírito de nosso tempo: a intermediação da vida por meios de comunicação de escala massiva. Em “Admirável Mundo Novo”, um dos meus livros preferidos que especulam sobre o futuro (e escrito no séc. XX por Aldous Huxley) há até a previsão de uma droga - sim, um comprimidinho tranquilizador – administrada e distribuída pelo Estado chamada soma, mas não me lembro de referências a shows da Ivete Sangallo nem ao Xou da Xuxa. Este é um contexto esquisito, com o qual eu sempre me assombro quando paro para refletir sobre os motivos que levam pessoas com o cerebelo altamente desenvolvido e o polegar opositor a organizar seu dia-a-dia em torno de fenômenos como as votações do Big Brother Brasil. Ou então o que justifica milhares de pessoas em simultaneidade dedicando tempo e atenção a coisas como o Programa Raul Gil. Tempo livre, ociosidade, necessidade de entretenimento e diversão, é claro. Mas deve haver formas melhores, eu imagino, do que banheiras em que atores se estapeiam por sabonetes, enquanto câmeras se posicionam ginecologicamente para deleite das audiências (sim, eu sei que esse quadro já está fora do ar, mas ele serviu só como ilustração patética de nossa condição).
Desenvolvemos uma vida arranjada em torno de um centro no qual estão dispostos receptores de ondas eletromagnéticas (ou então transmitida via cabo de fibras ópticas), aparelhos que delimitam o espaço para convivência da família. Em salas e quartos de tevê neste momento estão instaladas telas das quais jorram uma vida-de-fora-da-vida que ao mesmo tempo é a própria vida. Instantânea, simultânea, porém plástica, distanciada, artificialmente emoldurada para nos dar a sensação de que construímos e participamos de tudo isso que está aí, mas que ao mesmo tempo não temos nada a ver com isso. Voltarei ao assunto dia destes, mas como exemplos prosaicos podemos pensar no William Bonner falando boa-noite ou então em um jogo de futebol presenciado em estádio e a diferença de de assisti-lo pela televisão. Quem costuma ir às pelejas e depois volta correndo pra casa, ansioso para ver o vídeo tape, com replays, zooms e câmeras lentas, nunca deixa de se assustar com a impressão de que se tratam de dois eventos diferentes entre si, apesar de serem a mesma coisa.

Os desenhos animados constituem-se em outro fenômeno exemplar da vida contemporânea. Quando passo ali pela sala de tevê e vejo meus moleques aboletados no sofá em dia de frio, e escuto o espaço de suas vidinhas preenchido por vozes caricatas e ao mesmo tempo familiares, sempre me interesso pelo efeito, pela vivência e pelo sentido dos filmes que passam pela infância deles e comparo com os efeitos, as vivências e os sentidos dos filmes que passaram pela minha infância. Reflito sobre como eles se constituem em sofisticadas peças destinadas ao adestramento infantil; à inserção no mundo deles de valores sobre o que é o Bem e o que é o Mal; à aceitação da violência como forma legítima de constituição da sociedade; das relações ideológicas de justificativa do Poder; da presença de seres míticos que assustam e personificam a alteração do status quo; da condição contrária, na qual a Força está polarizada em figuras que podem defender o estado das coisas quando um alienígena resolve pisotear nos arranha-céus das Metrópolis que construímos de verdade e em nossas imaginações. Também não posso deixar de reconhecer como estes pequenos dramas da cultura contemporânea são divertidos, engraçados e engenhosos. Hoje por exemplo vi um episódio da série do Cartoon Network que se chama “Meu Amigo da Escola é um Macaco” (My Gym Partner’s a Monkey, criação de Timothy Cahil e de Julie McNally Cahil, de 2008). Vejam só o enredo da série: um menino (branco, wasp) tem o sobrenome alterado (de Lyon para Lion) por alguém que digita no computador e, desta forma, é transferido para outra escola (parecem ser os últimos anos do ensino fundamental) na qual, tirando ele, todos os demais alunos são animais. Claramente uma metáfora da transferência da escola particular, bonitinha, do subúrbio americano, para a escola de pobres, latinos, negros e estudantes desviados do mundinho padronizado. Esta é a escola Charles Darwin (opa!), na qual o Adão (Adam Lyon, é o nome do personagem com referência bíblica) trava amizade com um macaco-aranha (Jake), malandro, cuja principal diversão é bater na própria bunda. Tem também a cobra com camiseta (genial), a girafa, o diretor Sapão, a enfermeira Gazela e os professores (no episódio de hoje um mandril meio hippie tentava explicar sobre espaço vital e a importância de manter contato olho a olho). Ah, o episódio também contava a dificuldade que um dos amigos (o Wilson Gorila) tinha em lidar com uma fêmea que queria um encontro com ele. Gorilas são fiéis em suas relações e o personagem tinha muito medo de iniciar um relacionamento para toda a vida, sendo ainda adolescente. Por isso se escondia todo o tempo, inclusive dentro da barriga da cobra. O desenho acaba com ele aceitando melhor a convivência com a namoradinha (que lê um livro chamado Gorilla’s Bride, ou A Noiva do Gorila). O desenho é esquisitão mas tem bom roteiro, é engraçado e, pelo que li, não teve muito sucesso e já foi até descontinuado. Porém ideologicamente carregado de sentidos e ajusta-se perfeitamente a uma visão de mundo no qual crianças brancas são o centro e as demais são engraçadas, divergentes e meio abobalhadas. Este é o mundo que jorra da televisão, à qual meus filhos assistem e riem, assim como eu assisti e ri com outras coisas parecidas e, apesar disso, ainda posso escrever o texto que termino de escrever.


P.S.: Se quiser pensar melhor a respeito das cargas ideológicas dos gibis e dos desenhos animados, recomendo “Para Ler Pato Donald”, livro escrito por Ariel Dorfman e Armand Mattelart ali em 1976 (a última edição que conheço é de 2002, da Paz e Terra), que procura demonstrar todas as ilações ideológicas possíveis de serem identificadas na leitura de uma mera revistinha da Disney. Como o fato dos patos assexuados só terem sobrinhos (nunca filhos), viverem eternamente noivos, do respeito que todos os personagens dedicam aos milionários avaros e mais velhos, os quais representam o ideal de riqueza e poder. No contexto dos estudos de comunicação latino-americanos, Dorfman e Mattelart mostram que as tensões entre Bem e Mal, Justiça e Injustiça, n’O Pato Donald assumem um ponto de vista capitalista, liberal e modelado pelo estilo de vida norte-americano. É meio datado o livro, mas muito legal. Teve inclusive sua circulação restrita nos Estados Unidos, por causa de processos legais da Disney.

2 comentários:

yuzuru disse...

Para ler o Pato Donald é legal, mas é impossível usar para analisar loucuras pseudo-modernas como Ilha dos animais mutantes ou Phineas and Ferg.

Nao sei o que as criancas gostam, se às vezes nem os adultos entendem as piadas :-)

Unknown disse...

Neurologicamente, Big Brother e Raul Gil fazem sucesso justamente porque há pessoas com cerebelo altamente desenvolvido e uma fina camada de córtex cerebral.

Os desenhos animados de hoje são muito mais inteligentes do que os de 20 anos atrás, que, por sua vez, foram mais inteligente do que os da sua infância. Acho que isto torna a nova geração mais inteligente do que a nossa.